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15 abril 2007

Os Leitores na Ficção

Ao contrário do que alguns ainda possam pensar, não se faz um livro sem leitores. Pessoas que compram livros com objetivo apenas decorativo, na verdade não compram livros. O livro, neste caso, perdeu sua característica principal e torna-se um maço encadernado de papéis sujos de tinta, capaz de produzir fruição ao sentido da visão. O modo como a sujeira que ele contém estará organizada pouco importa ao seu dono, afinal, isso nunca será levado em conta. Somente quando o enunciado produzido por seu autor convergir com a decodificação feita pelo leitor é que o objeto passa a não ser mais objeto e torna-se livro. Dado o importante papel do leitor nesse processo de transformação, o que ocorre quando a ficção resolve se apropriar disso e transformar o leitor em mais um de seus personagens?

O exemplo mais lembrado dessa apropriação feita pela ficção talvez seja o personagem de Cervantes, que de leitor dos instigantes livros de cavalaria passa a se reconhecer como um corajoso cavaleiro capaz de se aventurar em realizações grandiosas. Nasce assim o Cavaleiro da Triste Figura, ou Dom Quixote, como lemos na capa do livro. Os resultados dessa substituição da pessoa real pelo personagem ficcional é cômico: enquanto leitor, o senhor de La Mancha é eficiente em seguir os enredos ficcionais, mas como personagem ficcional agindo sobre a realidade, o cavaleiro transforma-se numa figura cômica. Isso se dá porque somente ele se transporta para a ficção, as pessoas e as coisas se recusam a fazê-lo. Os moinhos, são vistos como personagens ficcionais pelo cavaleiro, mas continuam moinhos. Não seguem o enredo da ficção das cavalarias.


Talvez também, a personagem feminina que mais se assemelha ao leitor que se tornou Quixote seja a senhora Bovary de Flaubert. A leitora de Flaubert fez surgir até o termo bovarysmo, que se refere ao leitor que passa a não distinguir mais a fronteira que separa realidade e ficção. Madame Bovary é uma leitora voraz, que vê o amor idealizado através dos livros e passa a imaginá-lo como real, mudando seu comportamento em função das paixões que pensa serem genuínas paixões de romances. Em certo trecho, lemos a sua idealização num diálogo com Rodolfo:
"- Você me ama?
- Mas é claro que a amo! - respondia ele.
- Muito?
- Com certeza!
- Você não amou outras, não é?
- Acha que me conheceu virgem?! - exclamava ele, rindo"


O amor idealizado, um amor que existirá apenas entre duas metades que se fundem perfeitamente, contido nos romances que Madame Bovary lê, passa a ser o amor que ela imagina existir, transformando seu amante num personagem da ficção que, tardiamente, ela descobrirá não existir na vida real. Tal qual no Quixote, aqui também as pessoas se recusarão ser inseridas num enredo de ficção.

Que dizer do autor? Como se sabe, todo autor é também um leitor. Sendo assim, quem melhor que Fernando Pessoa para nos levar até o autor/leitor ficcional? O heterônimo Ricardo Reis, o poeta clássico fictício de Fernando Pessoa, é também leitor e admirador de outro heterônimo, Alberto Caeiro. Na "Poesia Completa" de Caeiro, lemos o prefácio escrito por Ricardo Reis, que dum modo magnífico e obscuro relaciona um 'evento' da vida de Caeiro à sua poesia:
"A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nele de que narrar. Seus poemas são o que viveu. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história. O mesmo breve episódio, improfícuo e absurdo, que deu origem aos [oito] poemas de O Pastor Amoroso, não foi um incidente, senão, por assim dizer, um esquecimento."


A curiosidade levantada pela menção faz o leitor buscar as páginas iniciais dos poemas de "O Pastor Amoroso" e encontrar, no final do primeiro poema, os belos versos:
"Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado."


A curiosa relação de vida e obra no caso de Pessoa faz lembrar o leitor que se torna também pesquisador e quer encontrar não somente a mensagem do texto, tal qual publicada, mas também a sua gênese. Daí, busca pistas em tudo que encontra disponível sobre o autor - cartas pessoais que o mercado editorial publicou após sua morte, biografias lançadas por renomados estudiosos, trechos incompletos de livros não publicados e assim por diante. O leitor literário passa então a ler a vida do autor de maneira também literária e por vezes se pega afirmando "ah sim! É isso!" pois imagina ter encontrado a desilusão amorosa que resultou na escrita do trecho que tão profundamente o tocou.

Por último, como não se lembrar do ávido leitor Jorge Luis Borges, um autor que se torna personagem em seus contos e que cita leituras de obras que nunca existiram? É dele a idéia mais aterrorizante para um leitor: a constituição da Babel, a biblioteca infinita, cujos labirínticos hexagonais contêm longas prateleiras cobertas de livros, cujos leitores percorrem-na em busca do Livro. Como nao se ver retratado, ao sentir a angustiante sensação de que por mais que percorramos nossas prateleiras, jamais saciaremos nossa fome de leitura, jamais encontraremos o Livro, tal como no conto de Borges?


O livro perdido é também tema de um outro conto de Borges, "Tlon, Uqbar, Orbis Tertius". O problema lá é que o livro já foi lido e não se consegue achá-lo. Não encontrando o objeto, não há livro? No nosso caso, quando vemos leitores terem opiniões tão desencontradas a respeito dum mesmo livro, não teriam eles sido vítimas também do livro ausente de Borges?

Certamente faltaria tempo para registrar todos os leitores que a ficção produziu. Que dirá então falar sobre todos os que dela derivaram algum prazer! A começar por cada anônimo, que num dia qualquer, se vê maravilhado com um mundo novo que lhe foi mostrado. Pelas janelas que se abrem através das páginas de um livro, ele se encontrou livre dos limites da realidade para habitar o belo mundo construído pelas letras.
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