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16 abril 2007

As Peças da Máquina

(ATENÇÃO: se não desejar saber os segredos contidos nos livros, favor NÃO LER o texto abaixo)

É interessante perceber como uma mesma característica em dois romances diferentes pode ser o ponto forte em um e o ponto fraco noutro. Refiro-me aos livros "As Correções" de Jonathan Franzen e "Bem-vindo ao Clube" de Jonathan Coe. O que caracteriza ambos os romances é que um leitor com um pouco de experiência logo consegue reconhecer as peças da máquina, ou seja, em que estrutura ambos os romances foram montados. É preciso reconhecer, que apesar disso, há um mérito em ambos: os autores escancararem os recursos literários que utilizam, mas isso é feito com qualidade. Ambos mostram bastante competência e coragem ao escrever dum modo convencional e conseguem prender o leitor. Mas então qual o problema? Passarei a analisar a estrutura em que o enredo é montado em ambas as obras.

O excelente "As Correções" de Franzen possui uma fórmula tradicional que move toda a narrativa. Tal qual num seriado como "Lost", por exemplo, o livro de Franzen traz uma história sendo contada no presente - o conflito entre duas gerações da família Lambert, com pais e filhos cada vez mais incomunicáveis - e em cada capítulo a micro história de um dos membros da família é apresentada em forma de flash-back. Em cada capítulo montamos uma parte do quebra-cabeças, fazendo com que o conflito que foi apresentado no presente fique mais e mais intrincado, até que todos os personagens se tornam como que vivos, fazendo o leitor sentir grande empatia por cada um deles, como se fossem nossos conhecidos. O flash-back, que poderia incomodar alguns, mal é percebido, tamanho o talento do escritor em misturar as histórias. Nunca temos aquela sensação terrível de que um livro foi abandonado e outro começou - ao contrário de alguns livros que utilizam o recurso e que são parecidos com aquele amigo chato que começa uma piada sem concluir a outra, deixando-nos curiosos. Franzen é magistral no modo como conduz a história, no ritmo como ela é contada e na capacidade de esconder detalhes para causar mais impacto quando são apresentados (o exemplo mais claro disso é quando Denise descobre que seu pai pediu demissão por sua causa). Daí, quando todas as histórias individuais são contadas, o autor, mais uma vez de modo muito competente, acelera a narrativa para que o livro acabe rápido, afinal aquilo que queria explorar, já foi explorado. O leitor termina o livro satisfeito e o autor consegue atingir seu objetivo. Enfim, o leitor sabe que foi manipulado e enxerga como, mas não está nem aí.


Como o livro de Franzen, "Bem-vindo ao Clube" de Coe é um livro estruturado de um modo tradicional, apesar do uso de vários modos de narrar (jornais, páginas de diários, cartas). Há uma pequena introdução, em que dos personagens que desconhecemos começam um diálogo e daí começam a contar a história de seus pais. Depois que se encerra a introdução, um narrador impessoal começa a contar a história de um grupo de amigos, cujo título do capítulo - que depois perceberemos será um título importante - é "A Gatinha e o Cabeludo". O cenário é bastante interessante: a Inglaterra pré-Thatcher, com sindicatos e patrões em guerra e o IRA em plena atividade. O núcleo da história é o garoto Benjamin Trotter e o autor vai apresentando os personagens que estão à sua volta. Inclusive sua irmã, a gatinha do título da primeira parte, uma personagem sem grande importância, até que ela começa a namorar um cabeludo. O tal cabeludo passa a influenciar Benjamin, de modo mais evidente em suas escolhas musicais, mas isso é claro é apenas a fachada. A sutileza da primeira parte é subitamente cortada na cena final, quando o cabeludo leva sua namorada até um bar para pedi-la em casamento e uma bomba explode, numa das descrições mais perturbadoras de um atentado terrorista. Até este ponto, o livro é genial, perfeito. Daí vem a segunda parte e tudo cai por terra.


Na segunda parte, intitulada "O Próprio Abismo da Perdição", o autor estranhamente acaba com todas as nossas sensações perturbadoras que produziu quando faz com que a irmã de Benjamin reapareça, contrariando a lógica. E pior: num determinado momento, introduz um diário em que ela escreve algumas impressões que não têm qualquer utilidade. A personagem, completamente desnecessária aquela altura, fica tentando aparecer para justificar sua sobrevivência. Os conflitos que Benjamin possui, enfraquecem-se, tornam-se quase um pastiche. Afinal de contas, uma coisa é o personagem perder sua irmã num atentado e outra é ter uma irmã traumatizada por causa dum atentado. A irmã de Benjamin, apesar de perder o noivo por causa de uma bomba num bar, não é uma personagem em quem acreditamos. Parece simplesmente não haver conflitos suficientes na sua montagem, uma personagem completamente rasa. Em resumo, todo o esforço que o autor fez para registrar impressões duradouras na primeira parte, é destruído por uma segunda parte ruim. O leitor fica embasbacado com a manipulação que é feita na primeira parte, reconhecendo o talento do autor, e depois se irrita com as peripécias na segunda - que em muitos casos não tem utilidade alguma para esclarecer a trama. Para tornar tudo ainda pior, no fim, o autor não esclarece as indagações que veio plantando durante a história, indicando que a resposta está num outro romance dele, chamado "O Círculo Fechado", como naqueles estúpidos "Continua no próximo capítulo..." que tanto nos irrita.

Ponto primário que todo autor deveria reconhecer: se você não vai fazer um esforço para esconder a fórmula que utilizou no seu romance, não subestime a inteligência do leitor. Seja honesto e utilize as fórmulas para enriquecer o enredo e não o contrário. Afinal ninguém que olha o motor de um fusca imagina que é um motor de uma BMW apenas porque o vendedor assim o diz. Se você vai mostrar as peças da máquina, que as apresente sem disfarçá-las.
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