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27 abril 2005

Ainda Sobre Crítica Literária

Continuando a discussão à respeito do valor da crítica literária gostaria de tecer alguns comentários sobre a entrevista de Eduardo Portella, citada neste post da Dani. Em primeiro lugar, discordo do ponto de vista expresso de que o crítico é 'alguém destinado a ditar o gosto'. O bom crítico literária trabalha com o objetivo de analisar obras e não impor nada. Ele 'aponta orientações' sim, mas isso não significa imposição. Também ele diz de 'um período de literatura plena e de grandes certezas'. Ora, este período nunca existiu! Antônio Cândido aponta muito bem que antes de Sílvio Romero haviam grupos de críticos que apresentam manuais e estudos literários, mas estes não possuíam um trabalho contínuo de reflexão teórica sobre literatura brasileira. Sílvio Romero, portanto, teve um papel muito importante nisso, pois suas críticas começaram a apresentar sustentação teórica e seu projeto pessoal envolvia transformar a crítica então existente (que era bastante limitada) em ciência. Seu modelo, embora bastante importante para a formação da crítica atual, posto em execução mostrou algumas deficiências que foram e ainda são apontadas e discutidas. Mesmo na época de publicação da sua principal obra, a "História da Literatura Brasileira", Sílvio Romero foi criticado por outros, que apontavam inclusive contradições na sua obra. Daí, surgiram outras obras que fizeram com que o trabalho do crítico literário evoluísse, expandindo-se e tornando-se mais valioso e instrumentado. Portanto, não existe um período de certezas, conforme ele diz, mas sim trabalhos de críticos que foram importantes, mas não isentos de discordâncias. Aliás, isso é natural em qualquer área do conhecimento humano. Além do mais, temos que admitir que o cenário onde a crítica atua sofre constantes mudanças (no nosso tempo isso ocorre de forma cada vez mais veloz), o que faz com que alguns pontos de vista antes defendidos sejam abandonados, pois os instrumentos utilizados para obter conclusões foram modificados e atualizados. É isso que faz com que alguns escritores antes valorizados sejam esquecidos e outros sejam redescobertos. Mas isso não invalida o papel da crítica, afinal o que se busca através dela não são certezas e sim (conforme já disse) orientações. Por fim, concordo com o comentário dele de que "o crítico hoje é um leitor a mais, um pouco mais instrumentalizado do que os outros, mas apenas um leitor". O bom crítico é um leitor experiente, que tem conhecimento teórico da literatura e este conhecimento lhe permite ressaltar alguns pontos, fazendo com que ele chegue a uma conclusão positiva ou negativa. Naturalmente em ambos os casos, deve haver uma base teórica que reflita o porquê de tal opinião.

Com respeito a seu comentário Dani, também tenho algumas observações. Eu não afirmaria que o leitor é 'incompetente' como você diz e sim que possui limitações naturais. A primeira é naturalmente geográfica. Um leitor de Minas Gerais consegue tirar muito mais proveito de "Grande Sertões: Veredas" do que um leitor da Indonésia, que nunca visitou o Brasil e nem sabe nada sobre o país. A segunda, o idioma. Ler "Ulisses" é bem diferente de ler "Ulysses". Alguns enigmas do livro estão escondidos em estruturas da língua e são impossíveis de serem traduzidos. A terceira são as próprias referências do leitor. Se existem alusões à Bíblia, mas o leitor nunca a leu, provavelmente ele não irá percebê-las. O bom crítico ajuda o leitor a amenizar um pouco estas limitações, dando mais informações sobre o texto. Claro que para alguns leitores, isso será desnecessário, por exemplo, se nenhuma das três limitações apontadas acima for empecilho para ele, mas na média, isso faz com que os leitores tirem maior proveito, afinal a maioria possui pelo menos uma dessas limitações. Daí, afirmo que mesmo um leitor com pós-doutorado em literatura pode tirar proveito da leitura do trabalho de um bom crítico sobre uma obra. Com respeito a sua afirmação de que 'quem aponta características geográficas, sociais ou culturais em um livro é a editora ou o tradutor desse livro' é certa apenas parcialmente. Alguns pequenos pontos podem ser esclarecidos por uma nota ou um apêndice, mas análises mais cuidadosas não são o caso. No caso de Joyce, por exemplo, os trabalhos magníficos de Harry Blamires em "The New Bloomsday Book: A Guide Through Ulysses" e de Don Gifford em "Ulysses Annotated" são prova clara disso. São notas extensas e informativas que refletem um trabalho gigantesco e cuidadoso de pesquisa que ambos tiveram. Um leitor que queira fazer algo semelhante talvez não teria tempo nem disposição para procurar tantas fontes diferentes e reuni-las, como ambos fizeram. Daí o seu valor.

Em suma, o que quero dizer é que a boa crítica literária serve a um papel positivo, embora é comum ser vista de forma negativa. Ela não é restritiva, nem é uma ditadura que impõe o que deve ou não ser lido, este papel cabe ao leitor. Pelo contrário, ela amplia a capacidade de escolha do leitor comum, procurando justamente eliminar os 'achismos' e colocar uma obra sob uma luz diferente, com toda uma base teórica por trás, com o objetivo de se chegar a um ponto de vista mais consistente do que apenas o gosto pessoal de cada um. Quando o leitor delega sua capacidade de escolher o que deve ser lido ao crítico literário, o problema é dele e não do crítico. Quando o leitor se informa, através da boa crítica literária, sobre uma determinada obra ou autor, ele está apenas reunindo mais uma informação para tomar sua decisão e assim tirar maior proveito qualquer leitura.
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