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15 março 2005

A Doença Crônica

Uma vez, numa discussão sobre "O Processo", um amigo me disse que Kafka era um doente. Embora achasse engraçado na hora, fui relacionando seus personagens e suas histórias a essa idéia e cheguei a conclusão que de certa forma ele estava certo. Sua obsessão em tratar absurdamente situações e o modo cruel como ele manipula seus personagens principais são marcas inconfundíveis da obra de Kafka. "A Metamorfose" nada mais é do que a explicitação mais clara dessa doença que percorre toda a obra de Kafka.

"A Metamorfose", não é meu livro preferido de Franz Kafka. Na verdade, da trilogia principal ("O Processo", "A Metamorfose" e "O Castelo") acredito que esse é o pior. Falo isso porque sou da teoria de que o estilo de Kafka deve ser-nos apresentado de um modo mais envolvente, aos poucos. E "A Metamorfose" é o mais direto Kafka dos três. Simples e conciso, o estilo de Kafka é jogado na nossa frente, sem rodeios,já na primeira frase da obra, que é uma das frases mais conhecidas da literatura mundial e que foi redigida com a clara intenção de nos chocar logo de início. O interessante é que tudo ao redor é perfeitamente verrossímil, exceto o fato do protagonista estar transformado num inseto. Aliás, parece ser essa a intenção do escritor: nunca deixar que o absurdo da situação tome o lugar principal na obra. Parece que o objetivo de Kafka é colocar o absurdo como pano de fundo para pintar um quadro em que os conflitos de Gregor Samsa sejam evidentes. Do ponto de vista do narrador, apesar do absurdo, tudo parece ser normal, o que faz lembrar algumas descrições fantasiosas do realismo fantástico que nasceria muito tempo depois.

São várias as "doenças" mostradas na obra: a transformação de relacionamentos por causa do dinheiro, obrigações morais impostas pela tradição familiar, alienação, necessidade de liberdade, culpa e outros. Todos os temas, no entanto, se relacionam de uma forma ou outra com a doença maior, a doença crônica de Samsa: sua crise de identidade. A transformação faz com que o personagem abandone suas anteriores preocupações que de certa forma o tornavam somente uma peça da engrenagem. Por isso, somente quando Samsa se transforma num inseto é que ele realmente se torna humano. Sozinho no quarto, ele pode avaliar quem realmente é. E, ao contrário do que se podia esperar, nesta situação todos o desconsideram, até poderem "jogá-lo fora". Especialmente na última parte do romance, onde o conflito de Samsa com sua família atinge seu clímax, somos levados por Kafka a entrar na "pele" do personagem. Quando anteriormente Samsa era um trabalhador qualquer, vivia em uma família comum. Quando sofre a metamorfose, ele conseqüentemente se livra do trabalho mas é abandonado pela família. Lemos as reflexões pessoais do personagem e sua análise do ambiente à sua volta e de como pouco a pouco ele é substituído e ignorado.

A doença crônica da desumanização pelo trabalho que Kafka nos apresenta é um tema bastante atual. O trabalhador que continua a ser a peça da engrenagem em muitos casos tende a se esquecer de ver a si mesmo, refletir em quem é e quais são seus objetivos. Na maioria dos casos, somos fortemente influenciados a isso, já que o ambiente a nossa volta costuma acreditar que essa é a regra. Sair desse esquema costuma causar atritos, inclusive familiares. Ler a obra de Kafka serve para abrir nossos olhos para a necessidade que temos de também sofrermos nossa metamorfose com o objetivo de nos humanizarmos. A doença crônica só pode ser vencida quando passamos a pensar em quem somos e o que queremos.
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