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26 janeiro 2005

Ficção e Realidade

Não sei o que dá na cabeça de alguns leitores de imaginar que uma obra literária de ficção tem "obrigações". Uma das obrigações mais infundadas é a de que a obra tem que "espelhar a realidade". Morro de rir às vezes de algumas resenhas que tratam um livro como se fosse a coluna política ou policial de um jornal. "O autor se preocupa em mostrar a realidade" é o que muitos escrevem por aí em jornais ou revistas. Socorro!

Mas até entendo o porquê dessa demasiada importância dada à realidade. Infelizmente nem todos leram Dom Casmurro. Pior: muitos até leram, mas nem todos aprenderam que nunca se deve confiar num narrador, numa história de ficção. Se soubessem disso, muitos leitores veriam os horizontes da literatura se ampliar. Como se tivessem uma visão monocromática, as pessoas simplesmente acham que um livro de ficção foi feito para se ler da forma mais literal possível. Lêem o livro e vêem o óbvio. Pronto, nada mais precisa ser explicado. É por causa desse tipo de leitor que vemos um monte de gente soltando comentários extremamente engraçados e, acreditem!, fora da realidade.

O fenômeno mais recente de "epidemia da realidade" na ficção foi o best-seller "O Código da Vinci". Numa navegada pela internet encontramos pessoas metendo o pau na igreja, como se o livro tivesse desenterrado as descobertas mais revolucionárias da história. Declaram-se ateus após a leitura do romance, pois "tudo lá é verdade". Confundiram tudo e o autor conseguiu fazer seu livro vender bastante só por escolher um tema polêmico e colocar na história alguns dados reais. E o leitor "acostumado com a realidade" caiu feito um patinho.

Para aqueles que ainda não se contaminaram com a "epidemia da realidade", recomendo a aula de literatura dada por Bernardo Carvalho no maravilhoso livro "Nove Noites". Contrariando toda essa lógica simplista, Bernardo Carvalho mostra aos leitores como os conceitos de ficção e realidade são separados por uma linha quase invisível. Em "Nove Noites" o autor quer buscar a razão do suicídio de um antropólogo americano. O antropólogo realmente existiu, realmente trabalhou com índios e realmente se suicidou. Esses dados servem apenas para que o leitor se sinta mais desconfiado do que é o costume. Às vezes, há uma clara sensação de que o autor está tentando manipular nossa visão dos dados apresentados, com o objetivo de pensarmos de um certo modo. Por exemplo, em determinada parte da obra o autor conta-nos sobre uma viagem que fez na infância com o pai ao Xingu. Na contracapa do livro até vemos uma foto de uma criança (que seria o autor) e um índio. Mas ao acabar de ler a obra não temos certeza se aquilo que foi dito é ficção ou realidade. Se a viagem realmente ocorreu, possivelmente não foi do modo como o narrador nos conta. Enfim, somos tão manipulados entre os dados apresentados e a ficção que a realidade não importa. Embarcamos com o autor na investigação sem nos importar com os resultados apresentados. Não quero ser um estraga prazeres mas para dizer a verdade o final do livro e da investigação é o que menos importa. Mas isso não quer dizer que não nos sentimos satisfeitos. O livro cumpre o seu papel e de quebra ainda ensina aos desavisados que livros como "O Código da Vinci" podem conter dados reais e ainda sim são considerados ficção.
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